OS AUTOMÓVEIS INVADEM A CIDADE - Zélia Gattai
Naqueles tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda
mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando
pelas ruas da cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros,
desprendiam, em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons
de buzinas, assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados
motoristas que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de
trânsito, muitas vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à
hora, velocidade permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do
trânsito, a cidade crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos
edifícios altos; nem mesmo o “Prédio Martinelli” – arranha-céu pioneiro em São
Paulo, se não me engano do Brasil – fora ainda construído. Não existia rádio, e
televisão, nem em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta fidelidade.
Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo,
ninguém se afobava, ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os
nomes completos das pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso
de siglas? Podia-se dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o
nome por extenso – sem criar equívocos – e ainda sobrava tempo para ênfase, se
necessário fosse.
Os divertimentos, existentes
então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos.
Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros; as
mais mínimas coisas, os menores acontecimentos, tomavam corpo, adquiriam enorme
importância. Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. A imaginação voando
solta, transformando tudo em festa, nenhuma barreira a impedir meus
sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como já disse, eram poucos,
porém suficientes para encher o nosso mundo.
Anarquistas,
graças a Deus, Zélia Gattai - memórias, páginas 23 e 24, 13ª. Edição, 1988,
Editora Record.
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